A liturgia de hoje convida-nos a refletir acerca da forma como devemos equacionar a relação entre as realidades de Deus e as realidades do mundo. Diz-nos que Deus é a nossa prioridade e que é a Ele que devemos subordinar toda a nossa existência; mas avisa-nos também que Deus nos convoca a um compromisso efetivo com a construção do mundo.
O Evangelho ensina que o homem, sem deixar de cumprir as suas obrigações com a comunidade em que está inserido, pertence a Deus e deve entregar toda a sua existência nas mãos de Deus. Tudo o resto deve ser relativizado, inclusive a submissão ao poder político.
mentário
Tudo é de Deus
Neste mundo que se presume democrático e de direitos humanos, mesmo que a realidade seja às vezes muita menos lúcida que as grandes declarações, há quem prefira dizer certamente que todos somos iguais, mas uns mais que outros. É que, na prática, o urgente não deixa que nos fixemos no verdadeiramente importante. Explico-me, levados pela necessidade de sobreviver, terminamos respeitando os direitos não de todos senão em primeiro lugar e, sobretudo dos mais poderosos. É o que se chama o entendimento assimétrico. Ou a aplicação assimétrica dos direitos humanos, civis, etc. E fazemos isso pela simples razão de que é melhor estarmos de bem com os mais poderosos que com os que não têm nenhum peso na sociedade.
Isto foi sempre assim ao longo dos séculos. Basta ver a história dos grandes impérios. E também, por que não reconhecer, a história da igreja. As razões e as vozes dos poderosos sempre tiveram mais peso na hora de tomar as grandes decisões da história que as razões e as vozes dos marginalizados, dos pobres, dos oprimidos. Todos somos iguais, mais uns mais que outros. Todos temos voz, mais uns parecem ter um amplificador potentíssimo e outros parecem estar sempre afônicos. E a justiça não se aplica a todos por igual. Assim foi sempre e, dizem alguns, sempre será.
Jesus, outra forma de ver as coisas
Mas Jesus veio pôr fogo no mundo e colocá-lo de pernas para o ar. No Evangelho deste domingo perguntam-lhe pelo imposto que deve ser pago, e termina se saindo com uma frase que talvez seus ouvintes não entendessem do todo - mais que outra coisa porque não há pior cego que o que não quer ver -. Jesus diz-lhes que se deve cumprir a justiça sempre. Por isso, deve ser dado a César o que é do César e a Deus o que é de Deus. Não se deram conta os que escutavam da profundidade que levavam aquelas palavras. Porque, há que seja de César e não seja de Deus? O Deus de que fala Jesus, não é o Pai de todos, o Pai amante e misericordioso que se desvela por seus filhos e filhas e que ama de uma maneira especial aos que mais sofrem, aos mais abandonados?
Devemos entender as palavras de Jesus no contexto de todo seu sermão. Não nos podemosfazer analises entre o que é exclusivamente de César e o que é só de Deus. Tudo o que afeta os seus filhos e filhas, preocupa imensamente a Deus, é de Deus no melhor dos sentidos. Nada fica excluído. Se o pagamento do imposto a César deixa aos filhos na miséria, Deus, o Pai, não fica indiferente.
Dar a Deus o que lhe corresponde não é lhe dar culto com muito incenso e abundantes cânticos. O culto, por mais solene e formoso que seja nunca dá a Deus o que é seu. Porque o seu, assim deixou dito e testemunhado por Jesus, não é receber “rendimentos” senão acolher a seus filhos e filhas, a sua família, lhes dar a dignidade que merecem e fazer o possível para que todos participem igualmente no banquete da vida. Isso é o que há que dar a Deus.
E isso, há que ser realistas, às vezes, demasiadas vezes, entra em contradição com o que é devido e justo dar a César segundo os critérios deste mundo, da justiça daqui. Neste caso, quando se produz o conflito, nos os seguidores de Jesus não temos dúvida: a prioridade está do lado de Deus, do lado dos filhos. Dito com outras palavras: a prioridade está no direito dos pobres, da defesa da dignidade dos oprimidos, do lado dos irmãos. Porque não outra coisa é dar a Deus o seu.
A verdadeira justiça
E aqui vemos algo que dissemos ao princípio deste comentário e que não deveríamos esquecer. Dizíamos que às vezes o urgente não nos deixa ver o importante. É que tão preocupados estamos em cumprir com o César - porque o castigo ou o prêmio é imediato - que nos esquecemos de fazer o que é verdadeiramente importante: cumprir com nossos irmãos, construir o Reino, reunir à família de Deus.
Fazendo essas coisas, talvez não vejamos os resultados a curto prazo, talvez inclusive tenhamos alguns inconvenientes em nossa vida. Mas ao longo prazo, seremos honestos seguidores de Jesus e faremos fraternidade para os demais e para nós, praticaremos justiça da boa. Não há outra forma de entrar no Reino. E, a verdade, é a única coisa que vale a pena fazer com nossa vida.
Fernando Torres
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