[ Uma interessante reflexão sobre o Natal por: Costanzo Donegana ]
(fontes: O autor é sacerdote do PIME e jornalista.
Artigo publicado na Revista Cidade Nova, dezembro 2011)
Um Deus na contramão
Natal é igual a panetone, espumante, compras, presentes, sorrisos que duram um dia. Quem pensa como bom cristão diz que tudo isso é acessório, revestimentos da verdadeira realidade de Deus, que nasceu de Maria. Porque Natal é a missa do galo, o presépio (Papai Noel não, por favor!), a família reunida ao redor da mesa, o presente para os pobres. Tudo isso para festejar o Deus Menino.
Mas você já viu esse Deus? Qual é o seu rosto? O que ele pensa? Quais são seus gostos e preferências?
As respostas são mais numerosas do que as perguntas, cada um tem a sua opinião, o que é normal: quanto menos conhecemos algo, mais precisamos da imaginação para descrevê-lo.
Mas nós cristãos não dizemos ter sorte porque Deus se revelou, se fez homem, viveu na Terra, falou, agiu, morreu, ressuscitou e nos deixou a sua palavra? Nós sabemos que ele é Deus. Sabemos mais ou menos. Em nome desse Deus que se revelou em Jesus, os que se dizem cristãos se mataram uns aos outros, queimaram na fogueira os que não pensavam como eles, defenderam que a propriedade privada é sacra e inviolável ou então que os ricos precisam ser eliminados, pois somos todos iguais.
E viva Cristo! Fabricado à imagem e semelhança dos cristãos de plantão!
Talvez a chave de leitura seja exatamente esta: existe um original e várias cópias. Tenho a impressão de que as partes se inverteram e as cópias tiveram a pretensão de se passar por original, vendendo o falso (ou muitos falsos) por verdadeiro.
Pensei nisso recentemente ao percorrer as estradas pedregosas da terra por onde Jesus passou, contemplando aquele lago atravessado pelos apóstolos amedrontados, aquela cidade – Jerusalém – onde se consumou o drama da vida de Jesus. Que Jesus se encontrou com aquele povo da Galileia, da Samaria, da Judeia?
Onde e como ele nasceu? Fora da cidade, recebido – por assim dizer – por um grupo de pastores sonolentos, também eles segregados pela sociedade, pelas pessoas de bem. Pouco depois, esse nascimento se tinge com o sangue de crianças inocentes da mesma idade do Menino, culpadas apenas por serem supostos candidatos a derrubar do trono um criminoso louco. Mais tarde esse Jesus joga fora 30 anos de vida (a juventude com os seus sonhos) no mais absoluto anonimato, numa cidadezinha desprezada, tornando suas mãos calejadas na luta com a madeira das oliveiras.
Finalmente resolve sair do buraco de Nazaré, tornando-se “mestre”. Mas não como os outros! Que companheiros escolheu! Gente ignorante, belicosa, ambiciosa… inclusive um tal de Mateus, vigarista profissional. Quando abriu a boca, disse: “Bem-aventurados os pobres; ai de vós, ricos!” E, realmente, não dormiu nos palácios. Não teve nem sequer uma pedra para usar como travesseiro.
Deve ter aprendido isso da mãe, que quando estava grávida entoou um canto no qual sonhou que os pobres ocupavam os tronos, de onde derrubavam os poderosos; e que os famintos se sentavam à mesa dos ricos, que os olhavam com o estômago vazio.
Que preferências ele tinha! Publicanos (ladrões institucionais) e prostitutas. Lembram daquela mulher que um dia irrompeu durante o almoço na casa de um homem de bem, respeitado pela sua religiosidade? Jogou-se aos pés de Jesus e ele se deixou tocar por esse ser impuro, aceitando as expressões de afeto que escandalizaram as pessoas presentes. Não só! Depois ele a indicou como exemplo de amor, rebaixando a respeitabilidade do dono da casa.
Não são casos isolados, mas retratam o seu estilo de vida, os critérios que norteiam as suas escolhas e que ele propõe aos outros, principalmente aos discípulos. Querem que ele seja rei? Foge para o mais longe possível. Ser os primeiros no reino? Imaginem! Últimos e servos de todos. Chama Erodes de “raposa” e diz que os que governam as nações as dominam e oprimem. Ama as crianças que incomodam os apóstolos e chama-as para perto de si.
Realmente não é o protótipo de alguém equilibrado, dos que se dão bem com todos, que dizem sim para tudo, que não querem ofender ninguém (e bastaria tão pouco!). Mas, então, não ama a todos? Claro que ama! Mas não como querem ser amados, pois diz “sim, sim; não, não”, de cabeça erguida, livre, sem pedir licença a ninguém. Quem o compreende, compreende. Quem não o compreende, não compreende.
Claro que tem preferências… é pelos que não são preferidos pela sociedade: os marginalizados, os excluídos socialmente e religiosamente. Quer levá-los para “dentro” e por isso lhes dá espaço. O problema é que aqueles que já estão acomodados não querem dar espaço nem a eles nem a ele, e o acusam de não respeitar as regras. Acusam-no de subversão, e, no fundo, têm razão: ele não suporta e não se deixa condicionar por regras de morte (o sábado, as purificações, os jejuns, os méritos…) para garantir uma sociedade e uma religião de mortos.
Há uma característica clara na vida e nas palavras de Jesus: o importante não é ele, mas o outro, e quanto menos importante esse outro for para a sociedade, mais importância terá para ele. Não é um Deus que pede para ser adorado e louvado, mas que dá dignidade a quem não tem, perdendo a própria. Quem já possui essa dignidade (ou a atribui a si mesmo) já recebeu a sua recompensa. É um Deus que é a raiz da árvore e não a copa, raiz que leva ao desenvolvimento da copa e à florescência.
É um Deus na contramão. Pedro tenta chamá-lo à razão, os seus parentes acham que ele perdeu o juízo, os fariseus e os líderes religiosos o odeiam porque ele abala os alicerces das suas construções religiosas privilegiadas, o povo tenta instrumentalizá-lo para matar a fome… No final da sua vida os seus seguidores diminuíram, mas ele não abre mão das suas idéias e das opções feitas.
Por quê?
Foi o seu grito, no final.
Por quê?
É uma pergunta que derruba as nossas certezas sobre Deus, a nossa linguagem feita de afirmações presunçosas: “Deus é assim, é assado, pensa desse jeito. A verdadeira religião, o verdadeiro cristianismo é assim”.
Não. Deus coloca em xeque todas as nossas certezas e os comportamentos que delas derivam: “Se você age assim é um verdadeiro católico”; “Esta é a vontade de Deus para você”; “Esses são do bem e os outros do mal”; “Aqui estão os nossos e lá os deles”.
Por quê?
Porque Deus é amor.
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